quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Maldição do trabalho.

Créditos pela imagem: Lucas Janin

Esse maldito trabalho
Que não é o que quero.
Que não é o que espero.

Esse maldito trabalho.
Que não parece ter sentido.
Que me faz acordar quando não gostaria.
Que me faz escravo do ponteiro mais rápido do relógio.

Esse maldito trabalho.
Que me faz tomar dois ônibus ou mais.
Que me angustia só de pensar.
Que amanhã será outro dia.

Esse maldito trabalho.
Que não tenho mais vontade alguma
De vir e sorrir para quem não desejo.
Ou de fazer o que eles dizem que deveria fazer.

Esse maldito trabalho.
Que é o supra-sumo do tédio.
Em que me agonizo por me prostituir
Vendendo cascas de simpatia que encobrem o fingimento.
O que sei é que as meretrizes muito dignas que são
Jamais venderiam seus sentimentos
Talvez elas em algum momento até os entreguem a alguém.
Talvez até mesmo para um desses seus clientes
Mas só os prazeres que propiciam é que estiveram em algum momento à venda.
Suas emoções sempre bem guardadas são oferecidas apenas aos merecedores.
De forma gratuita e quem sabe até incondicional.

Esse maldito trabalho.
Que me faz perder a beleza noturna.
Que me regula e me desregula.
Que tripudia sobre o que quero ser.
Que me torna minha instabilidade tanto mais freqüente.
Que me dilacera sutil e lentamente
com navalhas tão finas e pequeninas
que nunca fui capaz de perceber.

Cortou meus pés, para que não caminhe por vontade própria.
Meus calcanhares para que não me equilibre.
Meus joelhos e cotovelos pelo simples prazer de me desarticular.
Fragmentou depois em mil pedacinhos meu estômago...
e se não bastasse liquidificou os minúsculos pedaços de entranhas.
E digeriu o que eu usava para digerir.

E o meu cérebro se navalhado não foi
Espetado sem piedade se submeteu a torturas.
Motivo pelo qual estou eu assim zumbificado
E em meus lábios perpassa viscosamente o líquido sabor ferrugem
Minha língua impregnada de tal horror ficará
Por dias, meses, anos e além deles.
Impiedosamente!
Mesmo ao perceber minha frágil pele que estará carcomida.

E tudo isso foi tão pouco perto do mais doloroso
Que foi quando vi meu coração em fatias
Tão finas que chegavam a ter uma transparência avermelhada
Era tão bela a perfeição de seu corte que talvez até me esquecesse
Que em poucos dias estaria pútrido ali naquele prato
Pois sequer o comeriam
Apenas o deixariam apodrecer
E eu com olhos chorosos e impotentes de ação
Apenas via um dilúvio frente a mim
Com aquela água com gosto de soro caseiro
E que não era real para todos como todo real é e não é

E aqueles malditos desse maldito trabalho sorriam
Com as faces tão bem forjadas por sua rotina imbecil
Que mal eram capazes de compreender sua infelicidade
Nos escritórios fechados em seus cubículos pareciam bovinos
se enganando ao imaginarem que seriam racionais.
Pastavam o que lhes era oferecido sem questionamento
Enquanto se excitavam em espasmos orgásticos do capital
Que sequer lhes era seu de fato
Recebiam migalhas pouco maiores que as migalhas da maioria
E se satisfaziam com essa miséria um pouco melhor
Que apenas servia para empobrecer seu semelhante
O mesmo que ajudava com uns trapos no natal
Com os restos do peru de sua ceia farta até do que não comesse
E que fazia mea-culpa perante a hipocrisia de seus moralismos cristãos.

E eu nesse maldito trabalho
Tudo observava já muito desanimado
Esperando recompor minhas partes que foram tomadas.
E os malditos desse maldito trabalho
Tão cegos e estúpidos que são
Gargalhavam... apenas gargalhavam.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Conto do Louco sem nome - Parte 4

Créditos pela imagem: juliana.moraes

Vingança! Vingança! Vingança!
Vingança. Vingança.
Vingança...
Mas que vingança uma mulher tão doce e pura como Judite poderia tramar?
Sentia ódio, vontade de extravasar aquela dor sendo dessa vez algoz daquele que a fizera sofrer. No entanto, estava perdida. Impotente...
Era algo como se uma grande bola com superfície semelhante a um ralador de queijo se expandisse descontroladamente de seu peito, mas a mesma fosse incapaz de romper a sua pele.
Talvez a fúria e o ressentimento a impedissem de ter algum pensamento racional. Num desses acessos pensou em matar o tal Carlos. Não friamente, pois em sua mente só ocorriam imagens sádicas desses possíveis atos.
Um machado...
Cabeça.
Sangue!
Lágrimas...
Sorriso.
Angústia se esvaindo...
Depois de tudo um vazio...
Uma sensação de ter feito algo sem saber o porquê. Mais tormento...
Um machado ensangüentado e um sorriso precedidos de lágrimas que caíam num crânio rachado, não seria esta a melhor cena congelada em sua mente para a libertação de sua própria angústia. Seria apenas um desafogo, que no fim resultaria em mergulho num novo e poluído lago de desolação.
Decidiu então engolir seus sentimentos, para saber melhor o que fazer. Deixar se acalmar... Por uns tempos. Meses talvez... Anos, quem sabe?!
O tempo é relativo. Para uns tudo que acontece agora terá um grande significado daqui a dez anos, para outros isso de agora será eternamente uma grande estupidez. Para muitos coisas corriqueiras se tornarão belas ou memoráveis daqui a um tempo, para alguns poucas coisas serão dignas de serem lembradas, mesmo num futuro próximo. Nossa memória é seletiva. Decidimos o que é conveniente não ser esquecido. Mesmo quando não temos isso muito claro para nós mesmos. E em certas circunstâncias precisamos viver, absorver outras coisas para encontrarmos outros caminhos... Refúgios em prisões que nos resguardam de nós mesmos... Daquilo que somos, mas não queremos ser...
Decidiu se casar. Casar com Carlos... Transparecer que cedera a seus cortejos.
Idéia maluca pode parecer. Até mesmo incoerente...
Carlos lhe cobria do que achava que era o melhor do amor. Jóias, belas roupas, muitos presentes e ele mesmo sempre presente. Vivia em função de Judite. Casou-se com ela para a fazer feliz.
Mas ela era indiferente...
Se Carlos a tinha em sua casa. Se era sua companheira nos papéis judiciais que tão pouco valem, ela lhe era mais ausente do que quando descaradamente o desprezava. Isso o atormentava e o entristecia... Lembrava-se daquela vez que...
Catabloom!
- Hei, seu mendigo de merda! Saí daqui que da próxima vez que ficar falando esse tanto de asneira vai sentir muito mais que a sola do meu coturno!
Isso quem falava era o segurança do terminal de ônibus em que o nosso amigo louco contava suas estórias.
O louco caiu no chão com o chute, bateu a cara num banco de concreto ao lado e ficou todo sujo do próprio sangue. Gritava: “Fela da puta do carai duma figa rapariga num inferno”. Porém, não brigou. Apenas saiu do lugar.
Caminhava a passos rápidos, primeiramente, depois lentos... Depois lentos e rápidos e no fim foi parar numa praça. E escolheu uma platéia de pombos para continuar o que contava, mas que não lembrava muito bem do que seria.
- Boa tarde, meus caros amigos, muito mais nobres que toda a espécie humana. Porque apesar de seus piolhos e das doenças que trazem junto de si, são muito mais sublimes que qualquer um dos nossos. Porque têm asas! E têm a aparência do espírito santo! Apesar que eu não acho que ele seria cinzento e sujo como a maioria de vocês...
Alguns pombos pousavam sobre o homem. Ele não se importava... Suas roupas com isso ficavam mais coloridas, pois se misturavam a elas agora plumas e fezes dos pássaros.
Braços abertos, um rodopio, um cantarolar de uma música em língua desconhecida!
Ah, era perfeito! Cadê minha câmera para captar aquilo?!
Ei, uma faca! Faca, pombo. Pombo, faca!? O nosso amigo tinha se alimentado até aquele momento?
Entendi melhor aquilo quando ele degolou o pombo e ficou gargalhando, pois tinha algo para comer em seu jantar.
- Haaaaaaaaahhhhhhhh! Você tem cérebro de passarinho mesmo, heim?! Vai virar papá pro papai então! Haaaaaaahhhhhhhhh! Mas antes vou continuar a estorinha pros coleguinhas que aqui me ouvem... Um, dez, cinco, dezenove, vinte e oito, dezedez.... Nenhum... Nem gosto de gente mesmo...

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Conto do Louco sem nome - Parte 3


Imagem: devilpato1



Numa dessas noites, Carlos lhe contara também de uma tal Judite, nobre prostituta da zona leste da cidade de sonhos. Seria uma mulher muito procurada pelos homens, pois, se soubesse escrever e desenhar certamente seria capaz de dar segmento ao Kamasutra como se ele fosse uma seqüência de dez volumes. Não disse antes, mas é conveniente revelar a vocês que muitos dos homens da cidade não tinham cor.

Não eram brancos, negros, amarelos ou de cores intermediárias. Eram transparentes!

Não em tudo, os órgãos internos eram bem visíveis à distância. Se eram transparente, eram transparentes de pele. Homens assim eram muito procurados, pois as mulheres os tinham como belos. Acreditavam que eram uma espécie de metáfora, além das palavras ocas, daquela coisa de “enxergar o coração de alguém”.

Ademais, fascinava o fato que só havia homens transparentes. As mulheres assim nunca eram. Alguns chegavam a dizer que o motivo disso se devia ao fato de que as mulheres são arcabouços de mistérios e que ninguém jamais veria que tipo de coisa qualquer uma delas realmente guarda. Talvez até tenha certa lógica, pois as mulheres são mesmo muito mais complexas em atos, pensamentos e ações do que os machos ávidos por praticidade. Mas voltemos à história...

Dia desses, um dos tais homens sem cor consegue noivar com Judite. Ela se apaixonara pela graciosidade das veias daquele rapaz, se é que se pode chamar de rapaz um homem com mais de cinqüenta, mas como sua pele era transparente também não se viam suas rugas.

Quando soube disso o jovem Carlos, que vagava pelas zonas cantando o amor – que em verdade nunca conheceu além do que falava ele próprio e do que diziam os poetas e compositores musicais - se pôs a chorar , e de tal forma que seu pai dizia que ele mais parecia uma bica igual a que tinha em seu sítio e que vertia muita água.

O desespero se devia ao fato de que o jovem tinha Judite como mulher ideal, já que era uma grande puta e no país de onde veio elas eram muito admiradas e respeitadas.

Todo mundo queria casar com uma puta! Lá era assim! Pois era garantia de dinheiro, bom sexo e de nunca ser corno! Pois se faziam sexo com outros era por ser essa a essência de um fazer com qual conquistavam o direito de comer o pão.

E traição isso nunca poderia ser... Afinal só é traído quem não sabe o que acontece.

Carlos então passou a elaborar uma forma para que Judite começasse a odiar o rapaz transparente. Sabia que ela odiava o roxo.

Sim! Odiava essa cor, pois quando era criança se lembrava dos olhos de sua mãe, que costumava dizer que estavam maquiados. Mas sabia muito bem que os punhos do pai nunca poderiam ser tidos como artefatos para embelezamento...

O malvado - pelo menos é assim que quero transparecer que seja em minha versão da história - decidiu que transformaria o homem transparente em roxo. Teria lido em alguma ocasião que eles eram muito sensíveis à tinta guache, ao contrário das outras pessoas em que ela saía facilmente com água.

Foi à papelaria, comprou muita tinta. E, como morava num sobrado, onde o Tansparente passava todos os dias, ficou aguardando a sua passagem na hora que era habitual.

Enquanto a tinta tocava a pele transparente, o homem se mordia de dor. Se contorcia e as pessoas na rua tentavam socorrê-lo. Já viu um sapo se derretendo pelo sal? A situação era bem essa....

Foi levado ao médico, mas não houve solução...

Estava fadado a ser roxo pelo resto da vida, além de sofrer com uma série de complicações que, a partir daí, lhe seriam cotidianas. O pior, Judite nem quis vê-lo. Tinha trauma da cor. Jamais poderia suportar aquilo...

Assim, rejeitado e roxo, o homem transparente não suportou seu fardo e se suicidou, dois meses depois, em profunda depressão...

Só que Judite, apesar da proteção que a polícia local dava a Carlos, sabia muito bem o culpado de tamanha atrocidade. Não poderia deixar isso impune. Ainda mais quando o ridículo continuava a atormentá-la, implorando para que ficassem juntos.

Disse que ia se vingar... E se vingou.



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[Continua...]



quinta-feira, 23 de julho de 2009

Conto do Louco sem nome - Parte 2

Imagem: SirLeMojo


Era comum o louco falar de uma tal Bethânia de estupendos cabelos, mas que não eram louros e que, portanto, se assemelhavam a fios de metal que não eram ouro. Eram eles prateados e se era bela, não tinha a beleza das musas gregas, mas a de uma falsa gueixa que sequer seria japonesa. Também nunca, nem em pensamento, fora pura e, se atiçava o desejo dos homens bi e heterossexuais e das lésbicas, era porque tinha a fama de fazer sexo como uma gata em cio eterno.
Um dia, Bethânia idealizou e praticou um ardil para aprisionar junto de si um padre, que apesar de gordo e feio, sentia um profundo tesão. E foi assim que comprou LSD com traficantes e o misturou ao vinho que o sacristão beberia durante a missa. O padre, mesmo tendo muita resistência ao álcool e já ter fumado muita maconha na adolescência, acabou se entregando às ilusões daquela droga. Falou muitos impropérios contra deus, o papa, bispos e toda hierarquia do catolicismo e até se revelou ateu. As velhinhas que praticamente moravam na igreja para expurgarem os muitos pecados que – a despeito da prática de mais de cinqüenta anos, ainda vinham a acumular – olhavam estupefatas aquelas ações de um homem que há poucos minutos pregara o evangelho. Mal sabiam que, se ele falava agora a verdade do que pensava, era por estar sob efeito de entorpecentes...
Tão logo acabou a missa, Bethânia deu um jeito de ir a sacristia para encontrar o tal padre, que enfim estava só. Deu então um jeito de conduzi-lo a seu carro e levá-lo para o sótão de sua casa. Chegando lá a primeira coisa que fez foi injetar sonífero no homem para que ela fizesse uma cirurgia e extraísse suas cordas vocais. Afinal, não gostava muito de gente que falava... Talvez aí a razão de seu ódio por quase todo mundo...
No entanto, quando pensava que finalmente poderia com ele propiciar seus prazeres carnais, descobre que o homem era castrado. Censurou-se bastante por não ter se apercebido da voz fina que muito se distinguia quando se entoavam as canções de louvor a Deus. O pior de tudo é que como cortara as cordas vocais não poderia mais nem se deleitar com aquele doce canto de castrati, e isso em tempos de que eles já não eram mais comuns.
Ademais, se não se importava com a natureza do ser com que fizesse “amor”, por outro lado não suportaria não ter alguma retribuição. O que nunca aconteceria com aquele homem triste e amedrontado. Finalmente se apercebeu que cometera um grande erro e ficou temerosa do que a justiça poderia fazê-la pagar. Pegou então uma navalha se vestiu de homem e se pôs a errar pelo mundo vestida como mendigo. Viveu assim durante uns três anos numa cidade maior, próxima a sua, e tendo morrido de frio no último inverno.
“E o padre? O que houve com ele?” – Certamente o leitor atento estará se perguntando algo assim. Pois digo a verdade, que sempre digo, pelo menos quando é do meu interesse ou quando julgo que ela assim é.
Crianças que estavam nas redondezas, um dia depois da fuga da mulher, chutaram uma bola na vidraça da janela do sótão. Tocaram e tocaram a campainha e ninguém atendeu. Pois se houvesse morador naquela casa seria ele um fantasma. E é bem sabido que eles não existem à luz do dia – pelo menos é isso que os escritores de contos e os roteiristas de filmes de terror nos fazem acreditar. Afinal, eles atentos que são, bem sabem que as trevas nos despertam muito mais temor que a claridade do sol nas tardes e manhãs...
Oh, não! Mais uma vez eu em minhas digressões! Por favor, caro leitor, seja paciente e me censure não lendo as partes que perceber que incorro a poluir ainda mais este texto que por si só já considero tão ruim.
Mas voltando ao caso, as tais crianças, que eram três e se chamavam respectivamente X, Y e Z, eram bem atrevidas e como todas a crianças que jogam futebol na rua não estavam dispostas a perder uma bola. Fizeram uma votação e Z venceu (ou perdeu?).
Era ele tido pelos outros garotos como muito lerdo e sempre era o último a concluir as coisas. Os meninos fizeram então troças a respeito da má sorte de Z. Ele hesitou um bocado, mas apesar de não ser rápido, era bastante valente e seguiu a trepar pelas paredes até que ficasse sobre a casa.
Demorou, mas conseguiu chegar à parte de cima. Facilmente conseguiu abrir a janela a partir do buraco que eles próprios fizeram, tomando cuidado com o vidro quebrado. E quando se embrenhava no sótão à procura da bola, eis que avista o padre. O qual muito tentou perguntar, mas nunca obtinha resposta. Achou até que fazia graça. “Padre safado!” – pensou.
Só que de todo modo era aquilo muito estranho e então resolveu descer as escadas para abrir a porta de baixo para os X e Y pudessem ver. E X quando chegou lá, muito esperto que era, sabendo dos hábitos estranhos de Bethânia, concluiu que o padre havia sido raptado. Y, que era todo ouvidos, entendeu o que deveria fazer e saiu correndo, com seu estilingue na mão, para telefonar à polícia. Prontamente foram lá. O padre escreveu o que aconteceu e um policial mais descontrolado chegou a gargalhar histericamente daquilo. Nada se resolveu, pois não era do feitio dos investigadores solucionar todos os casos, pois se assim fosse, talvez um dia eles não tivessem mais emprego.
O padre, a despeito de tudo, hoje ainda reza as missas para alegrias dos surdos, pois ela é celebrada a partir da linguagem de libras!
Se esta história não pode ser descrita como um padrão nas histórias desse louco, que até o momento não citei o nome, isto se deve ao fato de que também não era diretamente coisa da cabeça dele. Dizia ter sido para ele contada por um tal Carlos, que vivia nos seus sonhos, e ser da noite que era, muito sabia do que acontecia nos submundos da cidade que morava.
Carlos, o boêmio, ficava a conversar com o louco, quando este, caído em sono estava. Por vezes o louco lhe mandava ir embora, mas teimoso que era, Carlos nunca obedecia. E assim, ficava a narrar suas aventuras noturnas, enquanto se embebedava naqueles bordéis, bares e inferninhos de imaginação. Ele dirigia a palavra ao louco sempre olhando para o céu e não era raro quando alguém lhe perguntava se estaria falando com Deus. Ele então respondia: “Por favor, respeitem nosso Senhor! Jamais seria Ele um tolo gigante doente das idéias!”. E assim caíam na gargalhada uns homens com faces parecidas que só se distinguia uma das outras pelas barbas mal-feitas de uns e pela quantidade de dentes que faltava em outros.


(Continua...)

Veja: Parte 1 de "Conto do Louco Sem Nome"

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quarta-feira, 22 de julho de 2009

Conto do louco sem nome - Parte 1


* História Estranha que publicarei em não sei quantas partes. :p


I
magem: Delincuentista


Era ele um louco que sequer se lembrava há quanto tempo que já era louco. Às manhãs saía para qualquer lugar movimentado como a rodoviária ou os terminais de ônibus urbanos. Ali podia sempre encontrar gente para ouvir seus causos.

As reações das pessoas quando ouviam aquelas histórias eram muitas. Alguns de pronto saíam de perto. Outros ouviam até o fim atenciosamente, mas, geralmente, por sentirem pena daquele que julgavam não ter pleno domínio de suas faculdades mentais. Tantos mais gargalhavam e zombeteavam dizendo que não passavam de estúpidas invenções de uma mente insana. Certamente, até mesmo aquela que parecesse a mais nobre das atitudes, sempre era motivada por uma idéia de que a loucura seria um grande mal.

O fato é que apesar de serem engenhosas as palavras daquele homem, de nada tinham valor, pois era ele um louco! E loucos quase nunca são levados em consideração. São tidos como abjetos demais para uma sociedade em que se preza a padronização e a sistematização dos costumes e das ações. Aliás, a própria loucura não seria nada mais, nada menos do que um desvio dos modelos de condutas tidas como legítimas?

Porém nada disso importa. Não importam essas minhas interpretações a respeito do que seria a loucura, ou meus julgamentos acerca de moralidade ou ainda qualquer opinião pessoal. O que deveria fazer seria penetrar na mente de meu personagem que não existe e, pelo menos tentar, a partir disso escrever uma história original e interessante. Pois bem... É o que me porei a fazer, sem, no entanto, me policiar por qualquer digressão que venha a cometer. Alguns vícios, quando se escreve, são quase inevitáveis, tanto mais no caso de um amador, como eu sou.

Para aquele louco, todo dia era um novo dia desconexo do anterior. Não tinha na cabeça essa noção de progressão da realidade que trazemos conosco. Se hoje era dia vinte e seis não teria problema se amanhã fosse dia dois. Tampouco se o mês que precedesse maio fosse outubro. Ou ainda que ano dois mil se desse ao mesmo tempo em que ocorria o ano cinco mil e trezentos e trinta e três. E se ninguém falava de algum mês que desse a seqüência ao décimo segundo, ou de algum dia após o trigésimo primeiro, não hesitava em se situar às vezes no dia quarenta e três de quinzembro.

Deste modo, era quase inevitável o gracejo daqueles que ouviam o modo bastante característico que ele começava suas narrativas, que não raro fazia em cima de um banco situado em lugares, como disse anteriormente, bem cheios de gente. Dizia: “Era trinta e três de quarentembro do ano três antes de depois do dia que Maria concebeu o menino filho de Deus...”.

Na cabeça da gente comum aquilo era hilário e assim logo já desqualificavam aquele homem. Viam-no como um demente coberto por vestes maltrapilhas e que trazia nos pés sapatos sujos e já bem gastos. Além disso, era cômico vê-lo falar daqueles tempos com periodizações absurdas e que nada tinham a ver com aquilo que estavam acostumados a ver nos relógios e nos calendários.

Também pouco interessava o que ele viria a dizer depois. Eram só palavras.... Talvez pudessem até serem tidas como belas se viessem da pena, da esferográfica, da máquina de escrever ou do teclado do computador de um renomado escritor. Mas vindas da boca daquele homem... Nunca chegariam perto do belo trabalho criado por um intelectual e tampouco teriam a graça da legitima poesia.

Mas se era aquele um homem tido como louco e, se as atitudes loucas são muito distintas das ações que se tem como normais, não é de se admirar que ele pouco se importava com alguma aceitação. O artista, o escritor, o poeta, o mecânico, o eletricista, o executivo, a cabeleireira e o músico, por mais que se pretendam inovadores e vanguardistas, sempre buscam alguma aprovação, seja esta advinda de uma só pessoa, de pequenos grupos ou das grandes massas. Já os loucos não têm esse tipo preocupação. Fazem o que fazem porque simplesmente isso lhes deu vontade.

Por isso, dia nenhum ele falhava àquele contar de histórias que tanto o alegrava pelo seu simples fazer. Era uma libertação, talvez não de si, mas tinha esse sentido de alguma forma, pois em sua mente estavam mesmo aprisionados aqueles personagens, lugares e épocas que costumava descrever. Porém, ressalto que não me refiro a essa abstrata e batida concepção que os escritores costumam ter do seu processo de criação. Para ele não tinha esse sentido de “produtos da imaginação”. Tudo realmente se vivificava e fazia parte do universo daquele homem.

Por isso não era raro, quando no meio de alguma história, ele cumprimentasse alguém que os que o observavam não viam, mas se tivessem prestado realmente atenção no que contara em algum momento anterior, teriam percebido que esse estranho “alguém” fazia parte daquele mundo que narrava. Inclusive, quando havia poucas pessoas e essas em face às suas incapacidades de enxergarem aquele qualquer ao qual o homem se dirigia, mas se apercebendo de que delas mesmo não se tratava, encontravam mais motivos de escárnio para com ele.


(Continua...)


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terça-feira, 14 de julho de 2009

Pássaros na noite


Ando pela cidade tarde da noite
Sem nem saber para onde vou...
Na alameda qualquer,
Quase nada ilumina.
Apenas a lâmpada de um velho poste
Emite um inconstante feixe de luz.

A madrugada por muito ser incerta
Faz a gente buscar alguma segurança
No resguardo das prisões domiciliares.
Já que longe do agito de bares e boates
Só os loucos é que vagam pelas ruas
E estes causam medo em que os vê.

Cidade grande, grande contradição...
Quanto mais gente, mais se sente só.
Quando virar a esquina o que será?

Ao meu lado um muro cheio de folhas
Tão extenso que parece nunca acabar.
No alto muito atento ele fica a observar.
Acinzentado repleto de penas e plumas
Reluzente mesmo quando tão soturno.

Mescla de terror e admiração sinto.
Um grito ecoante na cabeça.
Quando ele debanda em vôo curto...
Para encontrar um dos que são seus.
Completude do incompleto = 1 + 1 = 2.
Sinistro casal a se enamorar

Só que não conseguem esconder
Os olhos fulgurantes a espreitar.
Algo que imediato não sei dizer
E que escapa à minha compreensão.
Sempre muito limitada e medíocre
E cada vez mais imersa na obviedade
Não abstrai sequer a simplicidade
Que é tão intrincada neste universo.

Um roedor emerge de um bueiro...
De novo o terrível som estridente.
Feito o trespassar de vidro no chão
Incomoda a ponto de parecer sádico
Ferindo meus ouvidos por diversão.

Pelo ar se movimenta o ser alado
Rasante em direção ao bicho felpudo.
Amedrontado, paralisado e impotente
Sente apenas o dorso cravado por garras...
E em pouco os pelos e pele dilacerados...

Muita angústia se espalha
Em meio a todo aquele breu
Pouco possível é a resistência
Contradigo-me ansiando a fuga
Admirando sem me deixar piscar
Como o telespectador muito inerte
O final de uma novela fica a admirar

Não tenho qualquer poder sobre a situação.
Uma presa pouco vale para um predador.
É só comida necessária para perpetuar a vida.
Sedenta da energia da carne e sangue mortos.

E se me pego enojado pela carnificina
Logo encontro naquilo muita dignidade...
Bem maior que dos humanos contemporâneos
Que loucamente devoram a si e uns aos outros
E a ‘difícil’ caça se reduz a uma ida ao açougue.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Aprendendo a escrever...

Créditos Imagem: malaca.com.ar


Quando era criancinha
E mal sabia escrever
Queria fazer lindos poemas
Pois aqueles que criava
Eram humildes e inocentes
E pareciam ser muito bobos
Perto daqueles tão atraentes
Dos homens muito sábios
Das revistas e dos livros.

Hoje eu conheço mais palavras
E ao contrário daqueles tempos
Desejo escrever mais simples
Já que cansei da abstração
De coisas com sentido só pra mim...

Queria escrever para todos!
Para que qualquer um entenda
Mesmo de modo bem diferente
Do qual eu bastante pretensioso
Ousei colocar na cabeça de alguém.


Pois se escrevesse só para mim
Não saberia para que isso fazer
Seria melhor tudo esconder
E prender meu pensar inútil
Em obscuras celas da minha mente.

Alguns dirão:
Ele quer se desprender!

Eu lhes responderei:
É realmente verdade!
Cansei mesmo de amarras!
De policiar o que eu faço,
Pensar no profundo do vazio
Ou de apelar a alguma forma
Quando não tenho o que dizer.

Mas de novidade isso nada tem
A simplicidade já almejava
O pastor de palavras que foi Caieiro
Que era ele e não era ao mesmo tempo
Era Pessoa sendo outra pessoa
.
E Bandeira já gritava
A favor do lirismo louco
Sem comedimentos
Desprendido e liberto!
Uma poesia por si
Mas imaginando ser lida
E por isso mesmo acessível
Feita por um si que é si
Mas que é parte d’outro

Certeza de raro eu tenho
Na proporção do quase nunca
E meio por isso sou assim
Descomposto e desordenado
Avesso a vocábulos raros
Pois as palavras do comum
Já são muito complexas
E facilmente se fazem belas
Basta para isso um arranjo.

Mas acho que é bom ressaltar...
Nunca fui um romântico.
Menos ainda pós-moderno.
Nem mesmo parnasiano,
Simbolista ou jupiteriano.
Sou apenas um tolo qualquer
Com uma poesia bem assim
Tolices em letras no papel.
E, além disso, nada mais...



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domingo, 28 de junho de 2009

Mulher...


O batom deslizava... Realçava aquela boca de traços muito vivos e que parecia até ser dotada de magnetismo, pois aquele que a olhasse logo queria por ali se aventurar e já desejava sentir o gosto da saliva contida ali dentro. De fato, eram lábios que despertavam a libido e é bem provável que um romântico, voluntariamente preso em seu parvo universo de faz-de-conta, dissesse que neles conteria o “misterioso néctar dos deuses” ou algo do tipo, mesmo sem jamais tê-los beijado.

Retocava com maquiagem os contornos do restante de face, que não perdiam uns para os outros no que se refere à beleza. Atenta, se olhava no espelho a todo instante. Parecia não estar muito satisfeita. Passava outra vez um líquido para remover o que já tinha feito.

O mais certo era que nem precisasse de se embelezar, mas insistia. Qualquer homem heterossexual diria que estava linda e isso era nítido para qualquer um. Porém, as mulheres, mesmo gostando, não acreditam na superficialidade desses elogios e muito menos que se produziram suficientemente ou que ficaram da forma que desejavam.

Os homens, além disso, apenas vêem os aspectos de todo o conjunto. Não reparam nos detalhes que são tão caros a elas. Não enxergam o novo colar, a mudança sutil na cor do cabelo ou a combinação entre o vestido e os sapatos.

Assim, ela continuava a se ajeitar. Tinha um compromisso e queria estar maximamente estonteante para o felizardo que a encontrasse. Queria ainda que não só ele, mas qualquer um que a encontrasse ficasse tão atraído a ponto de querer vomitar todo o desejo que por ela sentia por não ser capaz de contê-lo.

O cabelo já estava arrumado. Tinha ido a um salão de beleza, onde também ajeitou os pés e mãos.

Olhou-se no espelho mais uma vez. Fez uma careta, mas em seguida gesticulou um sinal de aprovação. Não estava em pleno contentamento, mas era bem óbvio que estava atraente.

Dirigiu-se então ao guarda-roupa. Tinha ali cerca de vinte vestidos. Olhou-os por tempo suficiente para que no relógio o ponteiro dos segundos completasse mais que duas voltas e então decidiu retirar quatro dali. Em seguida provou todos. Não gostou. Mas com o último ainda no corpo, fitou os outros pendurados e viu um promissor.

Parecia ser coisa do acaso, estava ele bem atrás do conjunto que ganhara de sua avó há uns dois ou três anos e que considerava extremamente brega. Experimentou. Este sim! – disse após um suspiro que denotava um misto de alívio e satisfação.

Por baixo do vestido, uma lingerie prateada, colocada com a intenção de enlouquecer o sujeito que viria a se deleitar com seu contornos através do tato e daquela esplêndida visão.

Escolhia agora o que calçar. Decidiu rápido e da mesma forma foi com a bolsa e os brincos. O vestido parecia ser a base para tudo. Depois de tê-lo escolhido, todas as possibilidades de orientar seu visual pareciam já se definirem no seu pensamento.

Fez uma ligação. Pediu para que um tal Carlos a encontrasse na porta do prédio em cinco minutos. Antes de sair verificou se não havia com o que se preocupar. Olhou se o botijão de gás estava com a torneira fechada, se havia comida na gaiola para o passarinho e se não tinha nenhuma lâmpada acesa desnecessariamente. Certificou-se que estava tudo nos conformes e pegou a chave.

Saiu, trancou a porta. Seguiu andando e pegou o elevador.

Olhou para a velhinha que já estava ali e disse “boa noite”. Esta, por sua vez, depois de reparar a forma com que estava vestida e se ater principalmente ao decote na altura dos seios, respondeu, mas não sem uma cara de desaprovação. Ela notou isso, mas pouco se importou. Afinal, pelos trejeitos e pela bíblia que trazia junto à barriga, tinha notado que a tal senhora era evangélica daquelas bem ortodoxas.

A idosa desceu no terceiro andar. Ficou ali só. Ficou admirando as unhas. Gostou do trabalho da manicure. Pensou: “Vou voltar àquele salão”. Chegando ao térreo foi sua vez de sair.

Cumprimentou o porteiro, que ficou lhe admirando e trespassando a língua nos dentes até um bom tempo depois dela se afastar. Chegou à rua. Carlos não havia chegado.

Parecia tensa. Olhou no relógio. 21:39. Nove minutos atrasada. Mas logo, um veículo estacionou bem ao pé de onde estava.

- Desculpa, Flávia. Tive que fazer uma corrida urgente para um cara que ia lá pro aeroporto. Mas acho que tá em tempo ainda, né? Entra aí! – disse o motorista.

- Ah! Tudo bem... Vou ligar. Digo que já estou saindo, ele vai entender. – dizia ela enquanto entrava no carro.

Tirou então o celular da bolsa, digitou um número e o aproximou junto à orelha.

- Oi! Tudo bem, querido?... Olha, desculpa... Eu me atrasei, tá?... Mas já estou saindo... Sabe como é, né?... Mulher demora pra se aprontar... Tudo bem, então... Logo, logo a gente se vê... Só liguei para não deixar você preocupado... Beijo...

Carlos então olhou para o retrovisor perguntou:

- É para aquele lugar no bairro dos grã-finos que a gente foi semana passada mesmo?

- É sim, Carlos...

- Ah, sujeito de sorte aquele. Além de ser rico ainda tá com uma gata igual você...

- Carlos...

- Ah, foi mal. É que tem horas que eu não me controlo... Ainda mais perto de mulher bonita.

- Hummm... Sei, sei... Mas me respeita, o.k.? Sou uma cliente, não se esqueça!

- Melhor eu me calar, né? Assim eu evito falar merda. He-he-he!

- Pois é... Talvez seja melhor mesmo. – disse Flávia, de um modo tão simpático, que em momento algum parecia grosseira.

- Mas beleza. Logo, logo a gente chega.

Seguiu-se então um silêncio só interrompido pelo barulho dos carros que passavam na pista ao lado em direção contrária e cortando o vento. Ela observava a dinâmica da cidade. As luzes, os prédios, gente caminhando, e principalmente os bares. Estes sempre cheios de gente usando o pretexto de que ali estavam para beber para na verdade procurar alguma outra coisa.

Ninguém vai a eles só para isso – iniciava o pensamento. Quem vai sempre procura alguma coisa. Muitos vão atrás de sexo, tantos outros para saírem um pouco da rotina tediosa e alguns simplesmente para conversar. De todo modo, sempre parecia ser algo como refúgio contra a solidão. Se as grandes cidades são reduto de muitos milhares e até de milhões de pessoas, por outro lado elas se sentem tão perdidas que nunca parecem encontrar de fato umas às outras. Por isso, sempre estão a buscar alguém para que se sintam reconhecidas. Às vezes, acham que encontram e se acomodam com isso. Porém, uma hora descobrem que não é bem assim. Todo mundo tem um modo de ser, sendo que por mais que nos engajemos nessa busca do outro ideal, ela nunca se fará. Cada um é cada um, e entre o que se demonstra ser e o que se é, sempre há um vazio maior que de um cânion. Logo ninguém nunca nos compreenderá de fato e tampouco compreenderemos totalmente outro alguém.

Por esses motivos, Flávia não buscava o “par ideal”. Tinha noção de si como mulher forte e decidida. Não tinha tempo para essas bobagens melosas. Daí talvez viesse uma das principais origens da frieza que emanava e era bem perceptível para os que fossem mais atentos, e que por sua vez era bem comum às pessoas que carregam um certo desalento para com a vida...

Sua prioridade era se estabelecer profissionalmente e garantir uma condição social segura. Por isso, jovem que era, se dedicava aos estudos e em pouco tempo estaria formada, inclusive. Projetava então muitos planos.

“Abrir uma empresa. Sair daquele apartamento apertado. Construir uma casa... Fazer...”.

- Hey, Fábia! Já chegou, heim?! Parece que você tá tão longe que nem percebeu... – disse Carlos, sempre um tanto zombeteiro.

- Ahm!? Ah, desculpa... Estava pensando em algumas coisas. Acabei viajando na maionese aqui. Mas, de qualquer forma, eu não me chamo “Fábia”.

- Hehe! É tudo parecido.

- Humpf... Então... Quanto é?

- 42,95 pra você, princesa.

- Hum... Tudo bem... – Disse enquanto retirava da bolsa uma pequena carteira e dali uma nota de cinqüenta.

Enquanto isso, o taxista ficava com a cabeça virada para trás esperando e com o olhar ao mesmo tempo direcionado às mãos da moça que tiravam o dinheiro e os seus seios, que não eram fartos, mas eram bem do tipo que atiçaria qualquer apreciador das formas femininas. Flávia se apercebeu disso, ficou meio desconcertada, mas já estava acostumada com esse tipo de situação. Fez-se de boba. Entregou então o dinheiro e disse:

- Fica com o troco!

- Gracias, querida! Precisando, você já sabe, né? É só me ligar que estou sempre a postos pra você. Até mais! – dizia Carlos, com um ar malicioso, enquanto sem deixar piscar os olhos admirava a moça saindo do carro.

Já de fora ela retribuiu de modo apático o insistente aceno do homem. Estava mesmo era com vontade de xingá-lo. Como era chato, pensava. Só ainda continuava a chamá-lo para ir aos lugares, porque era costume e porque apesar de tudo ele sempre dava um descontinho nas corridas. Mas não continuaria assim... O que ele tirava do preço era uma ninharia visto o desconforto que sua companhia causava. Ia chamar outro já da próxima vez... Afinal, taxista era o que não faltava numa cidade daquele tamanho.

Enquanto pensava nessas coisas, ela rumava em direção ao portão da casa que era seu destino. Tocou o interfone e sem falar nada já ouviu:

- É você, Flávia?

- Sim, sou eu.

Logo se abriu o portão e era possível ouvir a voz dizendo para que entrasse.

Flávia caminhou lentamente apreciando o belo jardim. Chegou a parar um bocado para admirar uma roseira.

Agora que estava praticamente lá, já não parecia ter muita pressa.

Ao pé das escadas que davam à porta principal, estava um homem à sua espera. Bem alinhado, com porte de atleta e na altura de seus quarenta anos. Sorria, bem como aqueles sorrisos pré-fabricados nada caros e que se desenhavam facilmente debaixo dos bigodinhos dos galãs na era do cinema em preto e branco.

- Pensei que nunca fosse chegar...

- Ah... Já saí um pouco atrasada... Te disse na hora que eu liguei... Além de tudo, mesmo nessas horas o trânsito não costuma ser fácil.

- Não importa. O importante é sua presença aqui agora me propiciando essa exuberante e encantadora visão que é a que tenho de sua pessoa – dizia o homem.

- Obrigada, André... Não concordo, mas se é o que diz... – dizia enquanto disfarçava o agrado que sentia ouvindo aquelas palavras açucaradas.

- Pois pode acreditar. É a mais óbvia das verdades – dizia, enquanto estendia a mão para conduzir Flávia pela casa.

Ela já tinha ido ali outras vezes. Mas nunca deixava de se admirar com a arquitetura ou com os belos móveis que não eram poucos.

- Hoje virão alguns amigos meus aqui com suas namoradas. Para exibi-las. Coisa de homem sabe? Essa coisa de concorrer para ver quem é o maior conquistador. Mas tenho certeza de uma coisa: quando a virem se corroerão de inveja.

Flávia olhou meio indiferente. Achava tola aquela atitude. Porém não deixava de se sentir lisonjeada.

Logo eles chegaram. E, como André bem disse, seus amigos, mesmo com as namoradas bem do lado, mal conseguiam se controlar e sempre acabavam a ficar olhando admirados para o corpo e rosto de Flávia. Como sempre ela se apercebia disso, mas deixava transparecer que não.

No seu íntimo achava ridículos todos os homens porque se atinham tanto às suas carnes, que eram incapazes de perceber que nela havia muito mais e que tinha sentimentos. Mas não ficava a se lamentar por isso... Por suas experiências concluíra que os machos, a melhor definição que encontrou para aqueles animais, eram todos assim. Até André que era muito amável, facilmente se revelava tão superficial quanto o restante.

Enquanto isso seguiam todos a se divertirem ali, jogando conversa fora e cada um dos “machos” contando suas peripécias com o intuito de se afirmarem sobre os demais. Vez ou outra se escutava uma gargalhada masculina estridente. Para ela tudo aquilo já se tornava enfadonho...

Até tentara conversar com a namorada de um dos amigos de André. Mas depois de trocarem umas poucas palavras, achou tudo o que a outra falava tão sem graça e fútil que quase ficou enojada e chegou a ponto de sair dizendo que ia ao banheiro e logo voltava. A tal mulher não aguardou e seguiu a fofocar com outras que eram mais de sua espécie. Melhor assim, pois se estivesse a esperar, ficaria assim até o fim dos tempos.

Em meio à “fuga” um homem abordou Flávia. Depois de cumprimentá-la puxou conversa perguntando onde ela e André se conheceram...

- Eu o conheci num bar. Desses da moda... Você sabe... Quando a gente é solteira costuma ir muito a esses lugares.

- Ah, sim... E começaram a namorar já ali? – disse o homem.

- Na verdade, demorou um pouco para a gente começar pra valer. Ele me convidou para sair. Eu aceitei. E assim foi, durante umas três vezes. Aí então rolou um beijo quando a gente saía de um cineminha... E aí resumindo tudo: a gente ficou como está hoje.

- Interessante. Pois digo que André é um sortudo. Pois arrumar uma mulher tão bonita e além de tudo de aparência tão pura não é coisa para qualquer um.

- Ah, obrigada pela gentileza... Senhor...

- Marcelo. Pode me chamar assim. E não me venha com essa de senhor... Eu me sentiria muito mal sabendo que uma gracinha me tem como um velhote.

- Ha-ha! Você é muito gentil e agradável... Marcelo.

- Que nada. Só digo o que é verdade.

- Bem, tenho que sair... A gente se vê por aí no decorrer da noite.

- Espero que sim! – dizia Marcelo, que mesmo com sua noiva nos arredores e tendo André como amigo, observava a moça a se afastar tal qual um bebê faminto anseia receber o leite materno.

Foi assim que ela saiu. Sendo que o mais atento poderia notar que ela ria discreta, e certamente o motivo era por achar um tolo, aquele com quem acabara de falar.

A noite se seguiu tranqüila, apesar de todo o tédio, até a hora que finalmente esse Marcelo e os demais amigos de André saíram e ela enfim se viu quase a só com ele. Ele trancou a porta da frente, disse à empregada que poderia dormir e que se preocupasse com restante da limpeza somente no outro dia. Ela entendeu e se retirou.

Logo ele se sentou no sofá, e chamou Flávia para também se acomodar ali. Ela se aproximou. Ele a tomou em seus braços. Passou as mãos no seu rosto. A beijou. Seguiram-se tantos outros toques. A penetração. Corpos indo e vindo. Posições variadas. E mais idas e vindas dos corpos. Gozo para ele. Ela não sentiu nada de mais, mas fingiu se satisfazer. Um cigarro é aceso e compartilhado. Teve os cabelos afagados por ele e se fingiu sonolenta.

Convida-a para irem ao quarto, dissimulando o fato de queria mais e dizendo que iriam descansar. Ele abre a porta e a joga na cama, gargalha e sobe em cima de seu corpo seminu. Repetem o que fizeram na sala, de forma que ela não era capaz de perceber muita diferença em relação à primeira vez.

Muitos diriam que eu tenha narrado essas cenas fria e mecanicamente. Mas esta foi apenas uma tentativa de adequar o desenrolar dos fatos tais quais eram segundo a percepção que Flávia tinha deles. Pois ela não tinha grandes fantasias e, se não via o sexo como depravação, tampouco enxergava nele algum resquício de amor, cujos nomes, muitos se remetiam como sinônimos. No entanto, não chegava a ser totalmente cética a respeito dessa relação entre ambos (entre amor e sexo). Só que nunca tinha vivido tal coisa para nela ter plena fé. Considerava que era como deus. O qual acreditava desacreditando e de um modo que se nunca teve certeza de que existia, sabia que sua vida seria muito mais triste se algum dia um cientista que não tivesse algo de muito útil para fazer comprovasse que era só coisa da imaginação do ser humano, para que tivesse alguma perspectiva além do estado de podridão que se dá a sete palmos da superfície do solo.

A transa se encerrou. André virou para o outro lado e logo dormiu. Flávia continuou ali deitada e refletindo com o olhar para o teto que nada via devido à escuridão. Pensava daquele jeito que pensamos quando estamos preocupados com tantas coisas e estas ficam a martelar a nossa cabeça, tomam o lugar do sono e por mais que queiramos fingir que não estamos incomodados elas nos atormentam mais que um tenebroso pesadelo.

Com muito custo ela enfim adormeceu. Não que tivesse esquecido as preocupações, mas estas haviam lhe cansado ao seu limite. Não sonhou. Até porque isso lhe ocorria poucas vezes e ainda menos se não fosse em sua cama. Não estava acostumada à de André, apesar de não ser a primeira vez que ali se deitava.

Acordou e olhou para o relógio. 9:00 da manhã. Sobre o criado mudo estava um envelope com dinheiro e junto a ele um bilhete que dizia:

“Querida Flávia, obrigado pela noite agradabilíssima.

Você é a mulher mais linda que há no mundo e é capaz de deixar qualquer um alucinado com um simples movimento.

Enfim, me perdoe por ter saído assim subitamente, mas tinha compromissos lá na empresa.

Deixei o dinheiro neste envelope o qual já deve ter visto. Creio que tenha aí, além do que lhe devo, uma quantia suficiente para que pague o táxi.

Beijos ternos!

André”

Leu com indiferença. Também já estava acostumada a esse tipo de elogios e melhor era pensar que não fossem nada além de galanteios. Sabia como são os homens e de toda sua propensão para a falsidade para garantirem que ocorra o sexo ou que se repita outras vezes. Talvez – pensava – fosse este o motivo pelo qual se explicava o fato de que a maior parte dos grandes poetas fossem do sexo masculino. Afinal, homens inteligentes têm mesmo esse dom de saber dizer belas palavras vazias para agradar.

Além de tudo se não se importava era por ser sensata e ter claro em mente que aquilo nada mais era que trabalho.

Sendo assim não se permitiu qualquer esboço de emoção e se pôs a conferir o dinheiro. Em seguida se vestiu. Era prevenida e trazia um jeans e uma blusa na bolsa.

Saiu então apressada e pegou o táxi que mandou seguir até a faculdade. Com um pouco de sorte no trânsito e destreza do taxista talvez conseguisse lá chegar a tempo e pegasse pelo menos as últimas aulas.



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quarta-feira, 24 de junho de 2009

Crer ou não crer...


Um anjo só é um anjo para quem crê que é anjo. Pois, do contrário por mais que debande em vôo e venha a exaurir o mais belo brilho, não passará de um homem que só aparentemente faz isso. O mais provável é que não passe de um charlatão que utiliza efeitos especiais, um par de asas postiças junto ao corpo e purpurina espalhada em suas vestes.
Por isso, eu creio que por vezes é preferível manter certas coisas sob uma perspectiva fantasiosa. Afinal de contas, se assim não fosse qual graça teriam os mágicos circenses se os víssemos como os ilusionistas manhosos que são? Ou imagine só o quão triste seria ter certeza que de modo algum existe o paraíso e que tudo se finda quando pararem o coração e o cérebro. (Muitas vezes duvido de vida pós-morte, mas sei que seria bem pior ter certeza de que além daqui nada há...).
Se existem psicopatas de almas certamente são os céticos exaltados. Porque se o ceticismo é valoroso para se compreender o mundo, quando demasiado só serve para matar a fé. E fé é o que alimenta a alma.
Não, meu (inha) amigo (a)... Não falo de fé em deus, ou em religiosidade ou qualquer coisa dessa esfera. A fé que falo, mais que tudo se traduz em esperança de algo melhor. Melhor para você, para mim e para o mundo. Afinal, quem não tem esperança no amanhã incorre a abrigar em suas entranhas um algoz que usa a descrença em tudo como arma implacável, que fere a partir de dentro e faz chagas externas invisíveis, mas que se manifestam como dor insuportável a quem as sofre e àqueles que são seus convivas.
De vez em quando ouço alguma palavra de um ateu que se diz convicto de sua não crença. O que já é contraditório por que essa não crença é também uma crença, que por sua vez é uma crença de quem não crê, mas que crê em algo que é a negação de qualquer crença...
São gente muito confusa, isso eu sei...
Acham que vão transformar o mundo se destituírem as pessoas da religiosidade ou da fé. Por vezes chegam a se portar como tolos que se fazem de rebeldes e sábios e que tudo sabem, mesmo quando nada sabem (o que não é raro). Mal parecem saber que o dilema crucial não é o “crer ou não crer”, mas “crer cegamente ou crer de olhos abertos”.
Pois quem crê de olhos abertos não se permite embriagar no ópio, que Marx e Freud diziam ser a religião. Quem crê de olhos abertos percebe o quanto podem ser mentirosas as apropriações mundanas do que é considerado divino, mas também sabe reconhecer as beneficies das crendices que inspiram coisas boas.
E assim, de pouco importa me indagar se Jesus era filho de deus ou não, se teve um caso com Maria Madalena ou se ressuscitou no terceiro, no quarto, quinto ou em dia algum. Também não interessa saber o que é o Nirvana e como Buda o alcançou. Além do que, tanto faria questionar se uma figura mais “mortal”, tal como Guevara, foi um herói ou um psicótico sanguinário.
O que vale mais é tomar para si essas idéias de amor humanitário trazidas por esses homens, e para isso não é preciso cultuá-los ou tê-los como perfeitos. Já que se as ações podem ser errôneas, e no mais das vezes são, mesmo quando parecem ser ideais. A rota que conduz a um objetivo, por mais sublimes que sejam os planos de chegada, quase sempre se revela enganosa e traiçoeira.
Além disso, crucificar os outros por seus erros talvez seja uma forma covarde de tirarmos de nós mesmos os pesos de nossas próprias cruzes... A crítica não pode deixar de ser um exercício constante também para com nós mesmos. Não pode se deter apenas no aspecto negativo das coisas. Não deve ser só desconstrução. A base de uma crítica deve ser, antes de tudo, uma possibilidade para se vislumbrar novos horizontes.
Afinal, quando muito dizemos mal das ações de outrem esquecemos que nós também não conseguimos realizar tudo aquilo que queríamos. Por isso a(s) história(s) da humanidade é (são) assim: grande livro inacabado, onde sempre esquecemos de ler as notas de rodapé, que são mais extensas que o próprio texto... E no qual impera aquele sentimento de que os pesadelos não traduziram o acalento das palavras de bons sonhos que diziam nossas mães para nos fazer adormecer...
Porém só muda a si mesmo e muda o mundo quem ousa enfrentar os perigos desses pesadelos que sabe lá se vão acontecer. Só se realiza algo relevante quando não se teme e não se deixa desacreditar da utopia...
E assim digo sempre aos malditos conspiradores criados ou não por mim: Nunca me impeçam de sonhar, pois um homem sem sonhos pode até biologicamente viver, mas não é muito mais que um ser morto... Vivendo (?) estático e imerso na podridão dos vazios da descrença do seu próprio eu...
P.S.: Isto foi apenas uma quebra no afastamento. Até mais, companheiros!

sábado, 25 de abril de 2009

Interditado !

Por período indeterminado...

Motivo: pc roubado . =\

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Nossa relação com o passado...

Uma cidade sem passado
Assisti neste final de semana, por acaso, um filme que me chamou bastante a atenção. Chama-se: “Uma cidade sem passado” [mais detalhes aqui]. É uma produção alemã do início dos anos 90 e que é um misto de comédia, drama e documentário.
Vou resumir a historinha dele...
Uma garota de uma pequena cidade da Alemanha Ocidental é convidada a participar de um concurso de redação. Dentre os dois temas propostos ela decide pelo seguinte: “Minha cidade durante o III Reich”. O que ela queria com isso? Provar que a igreja se manteve íntegra durante o nazismo.
Porém já nos seus primeiros esforços para fazer a pesquisa, ela verifica que não é bem assim e que as pessoas não queriam que ela ficasse revirando coisas daquele período.
O que ocorria era que muita gente esteve envolvida com o regime e essas pessoas faziam questão de não serem mais associadas àquilo. Além de tudo havia a construção de uma imagem contraditória da cidade como um foco de resistência.
Era um passado convenientemente esquecível, não só para aqueles que se envergonhavam de suas ações, mas também para seus amigos, suas famílias e todas as pessoas ligadas a ele de alguma forma... Era enfim uma ferida não só de uns e outros, mas de um povo. E remexê-la não era de nenhum modo indolor.
Agora imagine só quantas coisas permanecem ocultas e sequer sabemos? Elas não entraram nos livros de história, não são revividas nas comemorações cívicas, não fazem parte da memória popular.
Talvez por aí, dentre outras coisas, tenha se cristalizado essa concepção de que somos seres passivos e de que não podemos mudar a realidade.
Fazer-nos acreditar que é assim. É o objetivo daqueles para quem é cômoda a atual situação! Brecht, em seus poemas já ressaltava isso...
Creio, no entanto, que esse é o principal compromisso da história hoje em dia: enxergar as contradições do passado, mesmo quando nos obrigarem a usar lentes escuras e embaçadas. Mas há de se convir que quem fecha os olhos por vontade própria, sequer enxergará o óbvio, mesmo que esteja a poucos centímetros de si...

terça-feira, 21 de abril de 2009

Liberdade alucinógena .

drugs

Créditos pela imagem: Ditch the Kitsch!!

- E agora eu vejo tudo da forma que sempre quis ver. As árvores realmente têm vida e posso ouvir e ver suas enormes bocas se revelando no meio de suas copas e soltando as mais alegres gargalhadas, que ser humano algum poderia fazer igual. O céu tem mais cores! E tantas que eu mal poderia enumerar... Só o azul tem tonalidades tão diversas, que a maioria jamais eu vi. Eu posso enfim sentir a alma das pessoas, desnudar suas mentes e compreender o incompreensível.

Eram essas palavras que Marcos costumava dizer após se drogar, ou seja, cerca de quatro vezes por dia. Acreditava que elas aumentavam sua percepção e que a partir disso estaria mais perto de desnudar todos os mistérios do universo que os caretas jamais saberiam.

Quando estava sob o efeito dos alucinógenos não havia problemas. Tudo era um grande paraíso do incomum, onde o inusitado era sempre fantástico e maravilhoso. Ali não havia contas atrasadas, não havia hipocrisia e tudo era mais belo. Em vez dos tons de cinza da cidade, tudo ao se redor se transmutava em uma beleza quase inimaginável. Tudo era uma mescla de naturalidade, encanto, pureza e encanto. As samambaias pareciam brotar junto aos raios de sol e toda a sujeira teria se desmaterializado para outro plano do universo.

Nesse seu mundo não existiam políticos corruptos e carniceiros. Aliás, sequer havia governantes. As pessoas andavam nuas pelas ruas e o amor era livre. Não existia o pecado.

O sexo era sempre entrega daqueles que o praticavam. Era pureza em essência e forma bruta até mesmo nas orgias. Tampouco existia violência, trapaça, cobiça ou inveja. Todos se respeitavam e se compreendiam. Fazia-se assim o mundo que sempre quis da forma que sempre concebeu em sua mente.

Mas logo os efeitos das drogas passavam e mais uma vez Marcos tinha que voltar para a realidade, onde tudo era mais bruto e rígido. Ali não havia lugar para essas utopias malucas que só realizam numa mente alucinada.

Logo, a única solução era tomar mais alguma dose. Mas não havia dinheiro.

O que fazer? Era preciso conseguir mais. Era preciso voltar para o mundo que sempre quis. – Não! Me poupem, malditos! Desliguem esse barulho! Abaixem o volume, seus desgraçados! – Era o que gritava desesperadamente da janela de seu apartamento no quinto andar aos carros que trafegavam a famosa e movimentada avenida, na qual estava localizado seu prédio.

Logo, se derramava em lágrimas. Precisava sair daquilo. O que fazer? Talvez algum furto resolvesse a questão. Talvez vender drogas também fosse, mas não confiava em si mesmo para isso. Tinha medo de comprar e acabar as consumindo ou dando boa parte para os amigos.

Quem sabe então se prostituir? Não se achava feio. Bem que poderia ganhar alguma grana como gigolô, pensava.

Porém, a despeito do fato de que sua casa não tivesse mais muita coisa, ainda possuía uma televisão. Poderia vendê-la e adiar um pouco esses seus planos apesar, que em seu íntimo soubesse que uma hora ou outra teria que ceder ao roubo, ao tráfico ou à prostituição. Quando refletia sobre aquilo parecia tudo muito caro e a incerteza lhe tomava. Será que valeria a pena?

Só que embrança daquele mundo louco e belo lhe tomava de assalto.

- Claro que valeria! E valeria muito! O que importava era fugir daquilo para se tornar outra vez.

E assim saiu apressado para vender o aparelho e um ferro de passar que era presente de sua mãe. Nem lhe servia para muita coisa mesmo. – pensava. E então dizia para si mesmo:

- Afinal de contas, eu gosto de roupas amarrotadas! Não é mesmo! Não é mesmo! De que me importa o que os engomadinhos vão pensar!? Eu não me visto elegantemente, mas sou mais vivo que eles. E não tenho correntes em meu corpo! Minha áurea é tão intensa quanto a mais pura água cristalina que à noite é cortada por raios do luar!

Logo saía do apartamento rumo a uma praça onde costumavam comprar esses objetos usados. Conseguiu vendê-los rapidamente e por um bom preço. Saiu então em direção à casa de um traficante que era de sua confiança para que pudesse comprar o que tanto queria.

Agora poderia mais uma vez se libertar. Isto é, pelo menos até lá pelo meio da semana, quando o dinheiro e as drogas viessem a acabar de novo...

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domingo, 19 de abril de 2009

Velharia da Semana #8 . (MC5 - Kick Out The Jams - 1969)

mc5kickoutthejams
Se tem uma banda dos anos 60 que conheço e que destoa de praticamente de todas as outras da década, certamente é o MC5.
Em tempos psicodélicos e de músicas viajantes e alucinadas, os caras faziam um som mais cru e bastante agressivo. Tanto é que alguns a classificam como proto-punk (algo como um antecedente do punk-rock) e outros a concebem como uma das bandas cujo som deu origem ao Metal.
Sobre isso, o vocalista Rob Tyner, os definiu muito bem certa vez: "fomos punks antes dos punks, new wave antes da new wave, metal antes do metal e MC antes do Hammer surgir".
Muito se fala também da postura política do grupo, que foi bastante perseguido pela polícia por conta disso. Mas o mais certo é que eles acabaram se envolvendo em tais questões, devido à influência de John Sinclair, que viria a se tornar empresário dos caras. Sinclair foi, entre outras coisas, o fundador dos White Panthers, um movimento inspirado nos Panteras Negras (Vale ressaltar que não era um grupo racista, eles apenas copiavam algo da forma de organização dos Black Panthers. O que queriam era simplesmente mais liberdade numa forma que muitos julgariam como radical e que se reflete no seu lema "Rock’n’Roll, Dope and Fucking in the Street").
De início, o interesse dos MC5 nada mais era que fazer um som que lembrasse os motores das corridas que ocorriam em Detroit, cidade estadunidense famosa pelas montadoras automobilísticas. O próprio significado da sigla que dá o nome da banda é uma referência à cidade dos motores: Motor City Five.
Mas indo ao que interessa, o álbum que sugiro aqui hoje é o Kick out the Jams [tracklist aqui], que mostra a banda na forma que os caras mais curtiam tocar: se apresentando num show lotado. A música que dá o nome ao disco é um clássico, sendo regravada por bandas mais atuais como Peal Jam e Rage Against The Machine (versão bem legal desta última inclusive).
Ouça Kick Out the Jams
Além dela, outras faixas são bem interessantes como Starship (criada em conjunto com o jazzista Sun Ra) e Ramblin' Rose.
Bom, acho que vale a pena conhecer, principalmente para quem curte algo de punk-rock ou um som mais sujo...
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Fatos, ressalvas e blá, blá, blá.
- Estou lendo uma HQ bem legal e gostaria de indicar, apesar de que alguns devem conhecer. Chama-se Camelot 3000. Coisa fantástica que mistura a lenda do Rei Arthur, alienígenas, visão de um futuro sombrio para a humanidade, belos desenhos e crítica à sociedade e à política. Talvez quando acabar venha a criar uma postagem sobre ela de uma maneira mais detalhada.
- Bah, é domingo. Acho que estou com a mente meio lerda. Nem tenho muito o que dizer aqui. Sorte de vocês que vou poupá-los de minhas bizarrices. Até a próxima postagem. Abraços!

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Duas-Caras .

Lembro-me do dia que ganhei uma revista de quadrinhos que me deixou com bastante medo. Era uma edição de Batman Anual da Editora Abril. Havia três histórias, se não me engaduas-caras_msn1no, e confesso que pela idade (eu tinha uns dez anos) eu não entendi muito bem todas. Principalmente uma que falava sobre o Morcego na Rússia. Àquela época eu não tinha uma ideia do que seria aquela tal URSS que recentemente havia deixado de ser (pelo menos se dizia) um Estado comunista, aliás, é bem capaz que sequer eu soubesse o que era comunismo.

Uma delas, no entanto, havia me deixado profundamente aterrorizado durante muitas de minhas noites. Mais até do que uma capa de uma revista do Fantasma que tinha duas caveiras com diamantes no lugar onde um vivo teria os olhos.

Mas voltando ao que me propus a falar aqui, era aquela uma história que contava a origem de Duas-Caras. Este que figura no rol dos principais inimigos de Batman.

Ao ler aquelas páginas senti medos diferentes. A primeira foi ao ver a face de Harvey Dent (o promotor público que se tornaria o vilão) ser deformada por ácido.

Harvey no decorrer da história ainda não era Duas-Caras. Isso se daria quando finalmente assumisse a outra personalidade oculta dentro de si mesmo.

Quando cheguei ao ponto onde isso ocorria me senti fascinado. Não sei se entendia muito bem qual era a daquele personagem que deixava exposto da forma mais evidente o possível o contraste entre seu lado bom e seu lado mal. Mas reafirmo que achava admirável àquilo.

Hoje, quando aqui me recordo, do alto da confusão de minhas lembranças tenho um parecer que ele lidava com isso de um modo também contraditório para a luta que vivia em seu interior. Pois se para muitos, seu distúrbio poderia ser caracterizado como uma constante violência psicológica para consigo mesmo, por outro lado, ele se utilizava de uma resolução bem objetiva para esse conflito: a própria sorte.

Era lançando ao ar a moeda de duas caras com um dos lados riscados, único presente dado pelo pai, alcoólatra e violento, que decidia a vontade de qual dos seus “eus” que deveria prevalecer. Sei que não decidimos o que fazer em nossas vidas necessariamente deste modo, mas por outro lado, acho que constantemente somos obrigados a reprimir uma boa parte de nossos desejos.

E isso se revela, por exemplo, quando nos sentimos incompreendidos por todos. Afinal, num mundo onde as normas, costumes e instituições definem o que podemos ser, não é incomum se sentir desamparado por nunca se poder ser o que de fato se é.

Mas voltando ao Duas-Caras, creio ainda que ele é ainda um exagero proposital do que seria o maniqueísmo para que ao mesmo tempo este seja negado numa análise mais aprofundada.

Como ele também não somos de todo bons ou maus. Acho que nossos sentimentos não se reduzem a essa perspectiva simplificada. Até porque o que tomamos como “bem” ou “mal” nada mais é que definições que foram se articulando a partir de conceituações dadas por pessoas tão humanas e imperfeitas como qualquer um de nós. E obviamente, se nos lançarmos a uma pesquisa sobre tais termos veremos que eles constantemente foram se ajustando em situações específicas, de acordo com interesses daqueles que estavam no comando de governos, religiões ou em acordo com as necessidades das diversas sociedades.

Não nego que existem atitudes consideradas “boas” ou “más”. Porém pergunto: como assim foram definidas?

Acredito que em alguns casos como necessidade da própria espécie humana, como por exemplo, a rejeição ao homicídio dentro da vida civil. Em outros, devido a identificações culturais, tais como algumas das restrições religiosas. Porém, o tipo mais questionável e muitas vezes perverso é aquele se dá por meio político e / ou ideológico e que serve como instrumento de consolidação do poder.

Isso se vê na atribuição de imagens maléficas para aqueles que manifestam algum tipo de objeção divergente. Cito neste caso, a construção do árabe como inimigo da civilização ocidental, o que é de uma arbitrariedade estúpida. Quem disse que nossa forma de compreender o que é civilização é ideal a todo o mundo? Por sua vez, se os países “civilizadores” tivessem um respeito maior pela diversidade cultural, além de não tentarem garantir a qualquer custo sua lucratividade no Oriente, o mundo não seria um lugar de mais paz?

Freud supunha que todos temos algo de perverso. Porém, não é preciso pensar muito para verificarmos que se manifestássemos essa perversidade a todo instante a vida em sociedade seria impossível. Já pensou se não resistíssemos a nossas pulsões sexuais e a saciássemos quando bem nos conviesse? Ou ainda, se sempre agredíssemos alguém quando sentimos raiva?

Enfim, se existe, prefiro pensar que a bondade resida nestes termos: a capacidade de melhor nos relacionarmos e nos solidarizarmos com os outros e na consequente compreensão de que somos integrantes de uma coletividade. Coisas que são bem difíceis numa sociedade tão individualista e que as pessoas mal compreendem a si próprias. Além do que, se assim ficamos, nos afundamos ainda mais nessa contradição e estranhamento de nossos “eus” e com o que definem como “mau” e “bom”. Sem nunca nos atentarmos que tudo isso nos compõe e nenhuma dessas facetas se cliva ou se exclui.

Talvez ter esse entendimento sirva para que não nos tornemos Duas-Caras enrustidos...

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