quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Ela, ele, o amor, e eu.


Créditos pela imagem: supercoco

Ele a amava. Era um amor bobo. O que não precisava para aqueles tempos, nem pro que emana quando salta aquelas lembranças. Era uma chata, inconveniente, desnecessária. Nunca havia cogitado antes algo com ela.

Ela era linda! Foi como a descobriu certa feita. Na beleza que emerge na descoberta dos receptáculos de seu gozo. Na sua firmeza. Na sua angústia agridoce. No desfrute da infinitude de seus seios. Nos seus dentes cuidadosos cravejando minha pele.

Ele a amava, e “amava” é o tempo-contradição do verbo. Quem ama, ama de um ponto de partida que não pode ter chegada. Pode se amar no futuro. Pode se amar no presente. Pode se amar desde o passado. E no presente e no futuro. No futuro e depois do futuro. Mas nunca só no passado. Nunca só no presente. Nem nunca num futuro que tem finalmente. O amor desconhece o calendário. Faz pequenina a história. Faz brochar o materialismo. Joga na mesa, em pleno jantar, a inconsistência e a fragilidade das esquematizações, dos sistemas, das teorias. Ele não tem regras ou leis e esfaqueia a obviedade.

Então devo dizer, de sincero, ele não a amava.

Não amava, pois me lembro de seu pior momento. Não foi só por ela, mas tomou cinco comprimidos de uma cicuta de tarja preta pra dormir até depois de todas as manhãs. Ele não amava, pois quem ama quer a vida indefinidamente. E quer o outro pra vida. Mesmo que o outro não queira a vida. Mesmo que a vida não lhe queira com o outro.

Ele a amava, pois era feminino. Ela era masculina. Não era perversão, era só amor. Ela era Ares e ele Afrodite. Marte e Vênus eram. Excitava-lhe a amorosidade essa fúria de guerra. Bem como seus ombros e corpo largos. Ele a desejava até o recôndito da alma e nas paredes em veludo que prosseguiam seus lábios.

Pois bem, com o coração a amava. Nos filmes interrompidos em beijos, amassos e as carícias profusivamente inventadas. Amava com os olhos contemplativos a seu sono, na vigília mais besta por bem nunca noticiada.

O amor por ela, para ele era o ódio. Pois era desespero no espaço de toda separação e reconciliação. Era a vitimização garantida no fluxo hormonal de cada mês. A cada TPM um fim e o soçobrar do orgulho como brinde. A indignidade ladrando no peito. Era um atestado! Um atestado gigante de minoridade e mediocridade voluntárias.

Amava, contudo, quando inseguro enraizava seus dedos nos dela. Na euforia das concessões raras. Na paixãozinha convalescida, decepcionada com as negações tão mais frequentes. As mãos juntas eram para ele seu carinho simbólico. Ela não queria simbolismos. Não queria tomar parte dessa junção, menos ainda lhe permitir significar.

Era ela tudo que sempre quis. Pelo menos havia se esquecido de querer outra coisa. Demorou e demorou a deixar de dividir o tempo em antes dela e depois dela. Era assim que via seu pregresso e progresso, sua volta na linha de seus próprios fatos, que exacerbados despontavam como alfinetes de dentro, na crise asmática de cada uma de suas solidões.

Seu amor era ridículo. Era capaz de vaguear a madrugada pela promessa de absolvição de crimes não cometidos, pelos quais lhe pregaram na testa, em arbitrário, uma nota apenas: “Condenado. Setor de Relacionamentos Humanos. Vigilância Sanitária”.

Ele a amava. Até que decidiu dela fugir passando por três estados e chegando a perder a mala e as roupas no caminho, mas em contrapartida, vendo a ressurgir alguma hombridade há tanto já olvidada.

Não, ele não deixou de amá-la naquele ponto. Era preciso mais algumas estações: passando pelos pontos dos bairros Mágoa, Decepção Depressiva e Ilusão Desiludida.

Não mesmo. Não havia ali deixado de amá-la, pois era um amor de átomo radiativo. Invisível, inchando na destruição de si. Era transfiguração incessante da esperança em cancro molenga, despido de qualquer traço de nobreza, incrustado na lava lascívia da Terra.

É verdade. Ele a amava. Não podia ser eu. Eu que ri pra mim quando ela disse, quando depois de tudo ter se passado, numa ocasião de encontro momentâneo, que podíamos voltar no tempo. Mas ele não volta, só circula o relógio, mas a cada volta completa, aumenta metade de um dia. E a cada duas metades de dia, tem se um novo dia. Que não pode ser como ontem, nem antes de ontem e nem antes dos outros antes.

Isso foi só quando ele havia morrido. Não era ele com quem ela abraçava seu corpo num momento logo atrás. Era eu, só ela que não era capaz de ver. De saber que não podia mais ser ele, depois da poeira se assentar sobre todos aqueles meses. Não podia ser, não dava mais para ser. E é bem verdade que ele não queria ser duro. Era necessidade urgente brotar carne revivida e se deixar perecer. A perenidade que era muito dura, se pode dizer. Então é que foi: eu estrangulei até o sufoco. Não faltaram lágrimas, força, indecisão e um sentimento que não era de perda, mas de perdido.

Mas não teve pena, nem dó. Era um dever e os traumas estavam proibidos para qualquer data vindoura.

Foi assim... ele se foi. Jazeu e tornou pó. Nem vale lembrar mais uma linha.

Devo confessar, contudo, dá menos temor falar de si em terceira pessoa.

Fim.


Uberlândia, 17-22 de junho de 2012.

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