domingo, 4 de novembro de 2012

Sono safado


Eu tenho trauma do sono. É quando eu perco o controle. O dia inteiro posso me dar conta de quem sou, o que faço, o que quero transparecer, forjar identidades, brincar com o personalismo de minhas personalidades.

Mas quando eu me rendo - e durmo - eu não posso. Sou qualquer coisa. Sou brinquedinho de meus medos, de compulsões ocultas e ocultistas, de meus eus escondidos.

Quando durmo, eu não posso. E daí porque eu tento e tento e tento e pouco durmo. Tenho medo de ser quem eu não quero. De cometer aquela gafe, entregar o jogo pra geral saber que “eu não sou tão bom assim”. Eu tenho receio de dormindo demonstrar que eu tenho medo até do sono, ou que eu sou tão egocêntrico a ponto de pensar o mundo conspirando para e contra mim. Não bastava eu ser a última bolacha do pacote, tenho ainda que me sentir a mais recheada. 

O tanto de “eu” desse texto revela que o digo, não é mais do que verídico, chega a ser quase problema venéreo...

Pois eu lhes digo: sono é o descontrole! É quando você não tem etiqueta, nem ética. Você segura o dia inteiro os gases próximo dos outros, mas dormindo solta um ronco mais alto que trombeta de banda escolar pra casa inteira ouvir. Seu corpo se mexe de um lado pra outro, você baba, respira, sua, sofre, ri, deseja e no frigir dos ovos, ou mais certeiramente, no abrir dos olhos, aquilo tudo ficou perdido, sem consciência, sem lembrança, perdido em labirintos de mente.

O sono é feito a língua pro Barthes, ele é fascista! Te induz a ele sem piedade, quando você nem mesmo o quer! Quando se tem pilhas e pilhas de coisa a ser feita e ele lhe fica a te chamar numa voz doce, envolvente, querendo impor, dizendo que a gente deveria abraça-lo. 

O sono... o sono! Ele é braço direito do autoritarismo das horas tentando impor ordenamento lógico ao nosso cotidiano. Vou lhes revelar: o sono quer a gente feito máquina! Quer nos despir de humanidade. Se o relógio é o caxias cíclico, que dá voltas, faz com que as coisas retornem no tempo dos acenderes e apagares de luzes celestiais, o sono é daquele tipinho impertinente que ajuda a fiscalizar se a gente faz tudo certinho, bonitinho, nos conformes.

Ah, mas quer saber? Eu amo o sono. Ele é delicioso. Ele é mais doce que pudim! Como é boa a noite que eu durmo abraçadinho dele. Fica tudo mais bonito. Sono, você é meu grande amigo. Da canseira, você me faz tão renovado. Me prepara pra um dia novo, de tantas alegrias.

Se eu fosse politeísta, podes crer que serias divino pra mim!

Só que devo revelar... até disso tenho medo. Numa dessas, você se torna Hipnos. E, se me restaura com o  véu noturno, anda implacável ao lado de seu par gêmeo Tânato, que basta querer pra me privar da maravilha luminosa dos amanhãs vindouros.

Pois ora bolas! Eu tenho mesmo é raiva do sono! Ele nunca foi meu amigo. Todo mundo dorme, só eu e uns dois que não. Eu tento me enamorar dele logo no início da noite, tem vez que até antes. Quando eu deito na cama junto dele, ele dá uma de traiçoeiro, arisco, de garota volúvel, de irritadiço, fica a querer me mandar pro chão, pr’outro lugar onde não esteja.

Caprichoso, no dia seguinte vem me cobrar o nosso amor não consumado. O sono é a musiquinha que toca na rádio: “me iludiu e depois foi embora”. Me dá uns pesadelos hora que tô acordado, e quando eu durmo nunca me dá um carinho, um chameguinho, nem uma canção de ninar pra eu poder ser mais sereno.

O sono podia transar comigo. Ele não quer. Só fica a me excitar, a me alisar com strip-tease. No muito me deixa em estado contemplativo com sua genitália. Fica como a rosa do Pequeno-Príncipe, ali perto-distante na transparência vitrificada da redoma, só pra se admirar.

O sono é uma puta! Nunca me beija na boca! Me cobra caro e cumpre protocolarmente nossa foda como a disposição de ingredientes e instruções de uma receita gastronômica.  Bem a calhar, pois banca o chef de cousine, que na hora de me por no forno, só pra ratificar a sacanagem, me leva pro micro-ondas.

É... vou te dizer...

Eu fico mesmo encafifado com o sono! Ele que vá se danar! Nunca rola química entre a gente. Rolo na cama, fecho, abro o olho. Pego um livro. Vou pro computador. Escrevo. Ouço uma música. Apago a luz. Acendo a luz. Deito de um jeito, deito de outro. Tomo remédio tem dia. Tem dia que não... Tenho medo de prejudicar meus outros sonos. Medito. Oro. Faço ginástica. Acaricio o vento. Me angustio com as coisas. Sorrio pra mais umas. Penso, penso, penso, penso... pra cabeça não aguentar mais. Daí eu me canso. Sem nem perceber eu durmo...


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Uberlândia, 04/11/2012 - 01:48h.





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